sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Que Ouves?

  

Que ouves?
talvez seja um canoa invisível que teus olhos não abarcam 
um casal de patos selvagens, na curva do rio, em dança amorosa 
nesta doce manhã deliberadamente brumosa 
será o doce choro das árvores despidas, engrossando as águas do rio 
o murmurar dos pássaros em seus ninhos, esperando pelo estio 
Que ouves?
talvez sejam os imaginários postilhões do horizonte 
anunciando que a densa neblina vai chegar 
ou a nostálgica luz cinza que dá esse encanto, ao teu olhar 
será o silêncio desta escassa luz e tesouros escondidos 
o desejo desta paz, procura incessante dos solitários perdidos
Que ouves?
talvez seja o ambicionado paraíso que tens perante ti 
que o tenhas encontrado sem ter dado conta 
ou um compasso de espera nessa vida de barata tonta 
será que te embebedas do tesouro que os olhos vislumbram 
com toda esta beleza de Outono, teus sentidos se perturbam   
Ou será que no esforço longínquo de procurar no Outono, na solidão 
não é realidade, esta paisagem, é sonho da tua visão?




© Poema: Fernando Antunes; Foto: Armando Isaac

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Há um lugar


Há um lugar
que permanece inalterado desde que o conheço 
lugar que está no meu coração desde o berço
Lugar da minha infância, onde aprendi a mergulhar com o silêncio na mão 
onde os pescadores sempre regressam  e os barcos  baloiçam na solidão   
Lugar onde a imensa nobreza dos homens ganha dimensão 
Neptunos de um mar menor na labuta do ganha-pão  
Lugar onde volto sempre que posso, e me sinto de novo menino 
sentado nas tábuas desse cais sorvendo o ar marinho 
Lugar onde ao sol poente nos esquecemos do tempo, sentimos o cheiro a maresia 
onde nos chega a paz, que merecemos, e a brisa tem o aroma da melancolia
Há um lugar
onde no cais os barcos descansam, os homens sonham olhando o entardecer 
onde o rio se torna laranja e o dia, sorrindo, diz que vai morrer 

© Foto: Armando Isaac; Poema: Fernando Antunes

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Levei pela mão



Levei-te pela mão junto ao mar
sentámo-nos na praia nessa noite de luar
era a primeira vez que nos aventurávamos
sozinhos, para os caminhos do amor trilhar

O silêncio do turbilhão das coisas por dizer
a angustia daquilo que queríamos
e ainda não sabíamos como fazer

Timidamente minha mão na tua de novo pousei
teus lábios de mansinho beijei

Senti tua entrega
olhos fechados para não ver
aquilo que aos poucos
íamos aprendendo a fazer

Possui-te meigamente
criando fantasias, sem saber
se era o descompasso do meu coração
ou as ondas nas rochas a bater

© Poema: Fernando Antunes; Foto: Armando Isaac

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Escuta




Escuta
escuta o ténue barulho das luzes
arrogante o vermelho, no seu poder efémero
gentil o verde dando passagem
cuidadoso o amarelo, seus avisos silenciosos

Escuta
escuta o barulho surdo de motores e buzinas
o chiar dos travões arranhando o asfalto
o arranque dos carros em sobressalto
o passo apressado dos peões

Escuta
escuta as palavras gritadas ou apenas ciciadas 
que se escapam das casas pelas frinchas das janelas
pelos interstícios das portadas, o ranger da porta a abrir
o som dos tacões altos de mulher que vai sair

Escuta
escuta as conversas no café da esquina
a colher a tilintar na chávena, a água a cair no copo
o isqueiro que acende o cigarro, o jornal a ser aberto
o beijo à chegada, discreto

Sou estátua de silêncio à chuva, na praça parado
onde tudo se passa

Onde tu não passas


(Poema inédito da autoria de Fernando Antunes, economista por formação e poeta por paixão, inspirado pela minha foto)